Um ano em dois
atos
Ricardo Guarnieri
O ano passado foi um daqueles que durarão por muito
tempo na minha memória, talvez nunca se apague e muitos frutos ainda haverão de
brotar, como esse que compartilho agora. Um agora que se forja sempre pelo que
vivemos em nome daquilo que sonhamos em viver, e assim se faz o presente, entre
um resvalo e outro, é a vida.
E a utopia continua no possível do sempre
impossível presente que não se basta apenas em viver pra frente, sempre
dependente de uma volta e meia nas paredes da memória, pelo menos enquanto as
tenho. Sentido único e múltiplo da vida, se não lembramos, fenecemos, não
apenas na carne, mas na vontade de poder (pelo menos comigo é assim, e desconfio
que com todos que choram, assim seja).
Primeiro
ato: o doce, mas nevrálgico Leonardo Boff. Estive com ele em duas ocasiões no
ano passado, uma em Mogi (saudades), e a outra na Rio+20. O questionei sobre as
escolas fincadas na ideologia desenvolvimentista, formadora de mão de obra,
qualidade mirada para o mercado de trabalho, e a sua resposta foi suave e
ensurdecedora, “A
escola é a chocadeira do sistema...”
Penso
que não preciso dizer mais nada, tudo está dito, mas nada resolvido. Mas o que
é mesmo que precisa ser resolvido, dito? Nada...
Posso dizer apenas uma coisa, algumas
coisas nos calam tão fundo que só nos resta continuar caminhando. Pelas mesmas
estradas? Pode ser, mas vislumbrando novas paisagens, criando atalhos, parando,
correndo, morrendo e vivendo, e voltando ao começo, com a história e ídolos
matados, sem o mínimo de interesse pela chegada, apenas pelo simples prazer de
ir indo.
Segundo
ato: depois de tanto sonhar, fui até o teatro Oficina e lá vi, participei,
comi, senti e por fim, falamos. Aquele homem, que te come por tudo que pensa e
diz, seu texto, sua gana, sua estética, sua tara num corpo que já não mais
condiz, uma pena, afinal, a melhor idade não passa de alguns segundos a mais.
Mas vivi, e muito silenciosamente ecoando em mim algumas
de suas palavras, e de toda aquela montanha, um fragmento me grudou, “Somos todos
bichos humanos iguais” . Tudo bem, até
aí, nada de mais para um leitor médio, mas depois de todo aquele vinho, aquela
práxis, aquela comida, é óbvio, se somos todos bichos humanos iguais, então preciso
voltar e repensar toda a minha trajetória de comedor de viúvas negras.
Zé Celso não sente
culpa. O homem? (mas isso já não me interessa mais), mas é o antropófago dos
palcos meu intento, é aquela comida que fui (fomos???) buscar, é a igualdade na
fome de compartilhar cada pedaço, é o abocanhar a existência pelo inteiro de
cada naco suculento, é o jorrar pelos buracos possíveis e inimagináveis, é
simplesmente viver e comer cada fragmento de suspiro, é viver indo.
As vezes é preciso
fechar as cortinas, ter a coragem de um Walmor Chagas. Juízo nenhum é mais
forte que a vontade de poder, nem mesmo os apelos de que a vida sempre vale a
pena. Morrer de morte provocada às vezes é a única forma de provocar a vida a
continuar indo.
As cortinas se
fecharam, mas não o palco da vida, apesar do amigo estranho engasgado no último
gole de coca gelada, a vida continua indo... e é nesse balanço de lá pra cá, de
cá pra lá, que o jardim da vida persiste em ir indo...