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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Um ano em dois atos

 
 
Um ano em dois atos
Ricardo Guarnieri
O ano passado foi um daqueles que durarão por muito tempo na minha memória, talvez nunca se apague e muitos frutos ainda haverão de brotar, como esse que compartilho agora. Um agora que se forja sempre pelo que vivemos em nome daquilo que sonhamos em viver, e assim se faz o presente, entre um resvalo e outro, é a vida.
E a utopia continua no possível do sempre impossível presente que não se basta apenas em viver pra frente, sempre dependente de uma volta e meia nas paredes da memória, pelo menos enquanto as tenho. Sentido único e múltiplo da vida, se não lembramos, fenecemos, não apenas na carne, mas na vontade de poder (pelo menos comigo é assim, e desconfio que com todos que choram, assim seja).  
        Primeiro ato: o doce, mas nevrálgico Leonardo Boff. Estive com ele em duas ocasiões no ano passado, uma em Mogi (saudades), e a outra na Rio+20. O questionei sobre as escolas fincadas na ideologia desenvolvimentista, formadora de mão de obra, qualidade mirada para o mercado de trabalho, e a sua resposta foi suave e ensurdecedora, “A escola é a chocadeira do sistema...”  
        Penso que não preciso dizer mais nada, tudo está dito, mas nada resolvido. Mas o que é mesmo que precisa ser resolvido, dito? Nada...
Posso dizer apenas uma coisa, algumas coisas nos calam tão fundo que só nos resta continuar caminhando. Pelas mesmas estradas? Pode ser, mas vislumbrando novas paisagens, criando atalhos, parando, correndo, morrendo e vivendo, e voltando ao começo, com a história e ídolos matados, sem o mínimo de interesse pela chegada, apenas pelo simples prazer de ir indo.
        Segundo ato: depois de tanto sonhar, fui até o teatro Oficina e lá vi, participei, comi, senti e por fim, falamos. Aquele homem, que te come por tudo que pensa e diz, seu texto, sua gana, sua estética, sua tara num corpo que já não mais condiz, uma pena, afinal, a melhor idade não passa de alguns segundos a mais.
Mas vivi, e muito silenciosamente ecoando em mim algumas de suas palavras, e de toda aquela montanha, um fragmento me grudou, Somos todos bichos humanos iguais” . Tudo bem, até aí, nada de mais para um leitor médio, mas depois de todo aquele vinho, aquela práxis, aquela comida, é óbvio, se somos todos bichos humanos iguais, então preciso voltar e repensar toda a minha trajetória de comedor de viúvas negras.
Zé Celso não sente culpa. O homem? (mas isso já não me interessa mais), mas é o antropófago dos palcos meu intento, é aquela comida que fui (fomos???) buscar, é a igualdade na fome de compartilhar cada pedaço, é o abocanhar a existência pelo inteiro de cada naco suculento, é o jorrar pelos buracos possíveis e inimagináveis, é simplesmente viver e comer cada fragmento de suspiro, é viver indo.
As vezes é preciso fechar as cortinas, ter a coragem de um Walmor Chagas. Juízo nenhum é mais forte que a vontade de poder, nem mesmo os apelos de que a vida sempre vale a pena. Morrer de morte provocada às vezes é a única forma de provocar a vida a continuar indo. 
As cortinas se fecharam, mas não o palco da vida, apesar do amigo estranho engasgado no último gole de coca gelada, a vida continua indo... e é nesse balanço de lá pra cá, de cá pra lá, que o jardim da vida persiste em ir indo...